Ignacio Ramonet, diretor do Le Monde Diplomatique, afirma que América Latina renova a esquerda mundial

Diretor do Le Monde Diplomatique, publicação mensal lançada em 1954 que se consagrou pela orientação de esquerda e analítica, o espanhol Ignacio Ramonet, acaba de fazer mais um de seus périplos pela América Latina. Ele esteve na Argentina, no Chile, em Salvador e em São Paulo, onde falou na última quinta no 1º Salão Nacional do Jornalista Escritor, promovido pela ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e que se encerra neste domingo (18) no Memorial da América Latina.

Em entrevista à Folha de S.Paulo, ele se disse decepcionado com a revolução da informação provocada pela internet e defendeu com veemência o governo do venezuelano Hugo Chávez. Disse também que considera um alento o fato de esquerdas "muito diferentes" e com apoio popular estarem surgindo na região.
Leia abaixo a íntegra da entrevista, na qual a repórter da Folha não esconde um certo descontentamento com as argumentações de Ramonet:

Seu interesse pela América Latina cresceu nos últimos tempos, não?
É uma questão de geração. Fui criado no Marrocos e, para minha geração, nascida logo após a Segunda Guerra, o grande debate político foi a descolonização, a africana em particular, mas simultaneamente prestamos muita atenção ao que acontecia na América Latina com a Revolução Cubana, as guerrilhas, a repressão. Há também uma proximidade cultural. Sou espanhol apesar de viver e trabalhar na França e meus pais eram republicanos espanhóis. Hoje o interesse é maior porque aqui neste momento há um fenômeno político particular. Quando todas as esquerdas internacionais parecem esgotadas, desprovidas de idéias e alento, aqui surgem esquerdas muito diferentes, mas com apoio popular forte em quase todos os países em que há eleições.

Muitos apontam que a melhora da situação econômica na região se deve ao ambiente internacional e não a políticas de esquerda especificamente.
É óbvio que uma parte do crescimento latino-americano se deve à situação econômica internacional, que se caracteriza pelo fato de que vários motores, como as economias chinesa e indiana, estão funcionando a pleno vapor. Mas neste momento na América Latina, em razão da pacificação geral da região, com exceção da Colômbia, e da democracia, com regimes legítimos e legais, e do fato de governos de esquerda estarem levando a cabo uma política mais ou menos intensa de redistribuição. O importante é isso, não tanto as políticas econômicas como causa da bonança, mas há em todos os governos a vontade de criar maior coesão social, de repartir e distribuir melhor os benefícios de um crescimento que não se via há muito tempo.

O senhor falou num ambiente de pacificação política, mas esse não é o quadro que se na Venezuela ou na Bolívia, por exemplo...

Falei de pacificação no sentido de que os governos são legítimos e não há insurgências, golpes de Estado. Mas isso não quer dizer que não haja violência social. O Brasil e o Chile estão entre os países mais desiguais do mundo. E há toda a tensão política em torno da Venezuela em razão mesmo da rapidez e da força de transformação lá, que desestabiliza os poderes tradicionais, que conduzem uma guerra ideológica e até uma estratégia de golpe de Estado. Isso não muda o panorama geral.

O senhor tem estado muito próximo de Chávez, não?
Pessoalmente, não. Intelectualmente me interessa a experiência venezuelana e tenho a sorte de tê-la acompanhada desde o início e ter podido regularmente conversar com o presidente Chávez e entendo o tipo de processo que acontece lá. E me parece que até agora o presidente manteve sua linha de respeito absoluto ao funcionamento democrático, à economia de mercado, mas, claro, aumentando a economia social, mas por outro lado levando adiante de redistribuir os lucros que o petróleo está produzindo neste momento.

Mas há na Venezuela dois aspectos preocupantes: a reforma constitucional, que concentra os poderes nas mãos do presidente, e a pouca tolerância com o debate. Ele não radicalizou demais seu projeto, depois da reeleição?
Eu acredito que o presidente Chávez, antes de introduzir a proposta de reforma constitucional, já era objeto de ataques muito violentos. Foi praticamente desde que se elegeu pela primeira vez em dezembro de 1998. O argumento da Constituição não é mais do que a continuação dessa política de desqualificação permanente. O fato é que o presidente nunca disse que ia impor a reforma da Carta, mas propor e submeter as reformas à decisão popular. Na Venezuela os meios de comunicação são os meios da oligarquia, quase toda a imprensa escrita, os grandes jornais, pertencem à oposição, as grandes rádios. Ninguém se escandaliza no mundo porque em 2000 o então presidente [francês Jacques] Chirac fez um referendo para mudar a Constituição e permitir que o presidente da República pudesse ser reeleito indefinidamente, pondo fim à limitação a dois mandatos. Ninguém disse que Chirac é um tirano nem que Sarkozy vai se manter no poder de maneira ilegítima.
Na Europa há pelo menos sete países cuja Constituição não limita o número de mandatos do chefe de governo ou de Estado. Na proposta de reforma da Constituição venezuelana não foi suprimida a possibilidade de referendos revogatórios de mandato.
Mesmo pessoas que apoiaram Chávez estão preocupados com a centralização do poder na figura dele e na supressão do debate até dentro do governismo.

Chávez sabe desde 2002 que a personalização do processo boliviariano o expõe de maneira excessiva, que se o processo descansa apenas sobre a pessoa dele a eliminação de sua pessoa elimina o processo. Contrariamente a tudo o que se diz, desde 2002 ele está ampliando o processo, dando poder à sociedade e tirando poder da oligarquia e do sistema tradicional e transferindo-o maciçamente para a sociedade. Dessa maneira, se o matam amanhã, o que desgraçadamente é possível, a sociedade está armada com poder para defender o processo. O movimento de transformação da Constituição tem esse sentido.

A direção do "Monde Diplomatique" e a associação Attac estiveram no final dos anos 1990 na vanguarda da organização do Fórum Social Mundial. Era uma época em que os Estados nacionais pareciam enfraquecidos. Hoje o Fórum e o Attac estão divididos entre os que recusam qualquer associação com o poder e os que defendem o trabalho com governos de esquerda no poder. Qual é a sua posição?
Quando criamos o Attac e participamos da criação do Fórum Social, estávamos em um momento no qual a globalização e a ideologia neoliberal eram triunfantes e havia muito pouco movimento de resistência. Nós estávamos convencidos de que era preciso passar à ofensiva não com a perspectiva de conquistar o poder, mas de transformar a sociedade a partir de baixo. Nós em particular apoiávamos as idéias do subcomandante Marcos, de que era inútil conquistar o poder pelas urnas porque a estrutura da globalização – o FMI, o Banco Mundial, a OMC – limitavam sua capacidade de transformação social. Marcos, como Bourdieu e outros, dizia que era preciso juntar todos os movimentos sociais da base em torno da mundialização. Pensamos em criar uma assembléia geral dos povos, dos movimentos sociais, que era o sentido do Fórum.
Quando o fórum ganhou certa importância, nós pensamos que era preciso propor um número de idéias com as quais todos estávamos de acordo para tentar implementá-las de maneira mais radical. Mas desde então muitas das idéias do fórum chegaram ao poder mediante eleições, com Lula, Kirchner, Chávez, Evo Morales. Agora estamos numa situação em que, além de transformar a sociedade a partir de abaixo, também podemos transformá-la de cima, na medida em que há governos com vontade, mais ou menos forte ou radical, de mudança. Em muitos países há um movimento dual dos movimentos sociais e dos governos populares, que se retroalimentam. É o que acontece na Venezuela, no Equador, na Nicarágua e na Bolívia. Hoje é normal que o Fórum Social esteja em crise, porque ele é menos indispensável.

O senhor lançou há pouco um livro de entrevistas com Fidel Castro. Acredita que pode realmente haver uma transição à chinesa em Cuba?

Eu não acredito que a palavra transição seja a que inspira os setores que estão pensando o futuro de Cuba. A mudança fundamental já aconteceu: Fidel não está mais no poder. Não acho que Fidel Castro vá de novo apresentar-se às eleições do próximo ano, as legislativas em fevereiro ou março e em maio a do presidente pelo Conselho de Estado. Fala-se muito do modelo chinês ou vietnamita, mas uma das características da Revolução Cubana é ter sido sempre muito singular. Provavelmente as mudanças terão como base o grande debate que está sendo realizado neste momento e que tem a ver com uma percepção realista dos principais problemas do país, de alimentação, de habitação, transporte, mas num marco da continuidade do que aconteceu até agora. O problema é: os Estados Unidos deixarão de intrometer-se no processo cubano, permitirão que siga seu curso sem interferência direta ou indireta?

Que balanço o senhor faz da revolução das comunicações produzida pela internet nos últimos 15 anos?
A internet modificou muito fortemente a comunicação e ainda não assistimos a todas as modificações que ainda pode produzir não só na comunicação como em outros setores como o comércio e a cultura de massas. No setor da comunicação a internet suscitou uma grande ilusão, de uma comunicação democrática, relativamente barata, fácil de conseguir e planetária. Hoje vivemos uma certa decepção. Não conheço o caso do Brasil, mas em geral os sites de internet mais freqüentados, os dez primeiros em cada país, já pertencem aos meios dominantes desse país. Há um alinhamento quase total. Claro que sempre resta a alternativa individual de criar um site, um blog, mas isso também tínhamos antes com a fotocópia. Hoje a internet massivamente utilizada está dominada pelos grandes grupos de comunicação.

E o que o senhor propõe em relação a isso?

Acho que é preciso, sobretudo na América Latina, estimular todos os meios públicos, criar um equilíbrio entre meios privados e públicos, que não existe na maioria dos países latino-americanos. Os próprios governos populares hoje têm que estimular a diversidade midiática. Eu propus a criação de observatórios. Os meios têm que ter um contrapoder. Hoje os meios são o único poder que não têm um contrapoder, como têm os poderes político, econômico. O poder midiático não aceita um contrapoder, em nome de sua característica de se considerar o guardião da liberdade de expressão e da democracia.

Mas quem exerceria esse contrapoder?
A sociedade.

Qual é o limite entre a fiscalização e a censura?

Os observatórios que proponho não têm o objetivo de censurar ou corrigir, mas de submeter os meios aos critérios de funcionamento jornalístico que eles próprios definem como seus. Partindo dessas definições, os observatórios publicariam um informe à população em geral sobre os desrespeitos aos objetivos expressos pelo próprio meio. Eles seriam constituídos por jornalistas, professores de comunicação e leitores em geral. A idéia é construtiva, não destrutiva. Como quero comprar uma comida saudável, sem pesticidas, quero comprar um jornal que não mente nem oculta. Um exemplo: foi armado um escândalo internacional em torno da não renovação da concessão da RCTV na Venezuela. Neste momento, na Geórgia, há um governo pró-ocidental, celebrado como modelo das revoluções democráticas na ex-União Soviética, que acaba de fechar dois canais de TV, um deles pertencente a [o magnata da mídia Rupert] Murdoch. Não se deu grande importância a isso. A diferença de tratamento é uma das observações que pode ser feita.

O que você acha da idéia lançada pelo filósofo alemão Jürgen Habermas de que o setor público deveria financiar jornais de qualidade ameaçados de desaparecer?
Não conheço o texto de Habermas. Mas hoje em dia uma boa parte da imprensa escrita está ameaçada, em razão da internet, dos jornais gratuitos, o financiamento fundamental é publicitário e está havendo uma proletarização dos jornalistas, a desclassificação social dos jornalistas e sua marginalização cultural, de maneira paradóxica. Por isso é preciso imaginar fórmulas que permitam a permanência de uma imprensa diversificada, que sejam representativas das diferentes categorias da sociedade. O problema dos meios hoje é que são um poder e continuam se qualificando de contrapoder. Mas os meios não são mais o quarto poder. E, em relação à democracia, exigem transparência mas não tem um funcionamento democrático em seu interior. Transformaram a informação numa mercadoria regida pela lei da oferta e da procura e não pela lei da informação.

Quando vemos, por exemplo, as notícias mais lidas nos sites de notícias, elas muitas vezes estão ligadas ao mundo do espetáculo, das celebridades. Não é isso o que as pessoas querem? Como conviver com esse paradoxo?
Como se sabe, a opinião pública é reflexo dos meios de comunicação. Ela não existe sem os meios. Se esses são os artigos escolhidos, é porque são os apresentados. Os meios formaram um tipo de sociedade em que tudo que é anedótico, fútil, divertido é dominante. Como a internet permite fazer esse cálculo rápido, nós poderíamos fazer hoje um jornal que só daria aos leitores o que eles querem e isso seria muito superficial. Na Flórida, o "Boca Ratón News" todos os dias pergunta a seus leitores que notícias querem ler amanhã e hierarquiza as informações em função disso. Hoje há um problema com a identidade dos jornalistas. Todos podem pôr sua informação na internet, enviar suas fotos dos acontecimentos – o 11 de Setembro não foi filmado por jornalistas, as fotos de Abu Ghraib não foram tiradas por jornalistas, nem as da execução de Saddam Hussein.

E como vai o "Monde Diplomatique"?
Também passamos dificuldades na difusão do jornal em papel. Nossa página na internet teve um crescimento regular nos últimos anos, mas a edição francesa teve queda de 5% neste ano, está em 250 mil exemplares. Mas temos 70 edições internacionais, inclusive a brasileira, lançada neste ano. Essas somam 2 milhões de exemplares em 30 línguas.

Entre Zapatero e Sarkozy, qual é sua preferência?

Zapatero, claro, mas ele teve uma atitude tão estranha na cúpula Ibero-Americana, que me surpreendeu.

A situação hoje na França parece mais favorável às reformas liberalizantes propostas por Sarkozy do que em 1995, quando greves derrubaram o governo de Alain Juppé...

Eu discordo. Sarkozy se beneficia uma vez mais de uma cobertura midiática muito favorável, mas agora começa a resistência social. Não será tão fácil quanto Sarkozy imagina. O tipo de reforma thatcheriana que ele quer fazer, com 20 anos de atraso, terá dificuldades para se impor.

Em relação à disputa entre Lula, Chávez e Fidel Castro sobre a validade dos biocombustíveis, qual a sua opinião?
Eu não vejo uma disputa, mas avaliações diferentes. É natural que Lula defenda o álcool porque o Brasil é um país que até agora não tinha petróleo suficiente para sua massa demográfica e seu projeto de desenvolvimento. Fidel salientou que, se o mundo inteiro passa ao álcool, haverá um problema de fome. A organização da ONU para a agricultura lhe deu razão, assim como todos os grandes jornais sérios. A lógica brasileira não pode ser estendida ao mundo.

Muitos setores da esquerda mundial se decepcionaram com Lula. O senhor compartilha dessa decepção?
Em parte sim. Mas Lula continua tendo a minha simpatia e de um grande setor da esquerda internacional porque enfrentou condições difíceis, governou sem maioria no primeiro mandato. Não é possível lhe pedir que faça o que em outras circunstâncias teria podido fazer. Ele não conseguiu acabar com a fome, o analfabetismo. Digamos que se esperava a face diretamente social do governo de Lula e que ela não chegou. Nesse sentido há uma certa decepção porque se imaginava que ele assumiria a liderança em relação à vontade redistributiva. Mas sua reeleição demonstrou que continua contando com o apoio dos mais necessitados dos brasileiros e isso é muito respeitável.
Fonte: vermelho

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